30.10.17

A hipótese das avós

Apesar da distância de dois mil quilómetros que nos separa, os meus filhos têm uma relação muito próxima com as avós (e com os avôs, mas a relação que mantêm com as avós distingue-se claramente). Não sei se foi sorte ou se essa relação iria existir sempre, mas sei que é um aspecto na vida deles a que eu dou muito valor.

Foi com a Alison Gopnik que primeiro ouvi falar da «Hipótese das Avós», que avança a ideia de que a menopausa existe para retirar às mulheres o custo da reprodução, permitindo-lhes ficar disponíveis para ajudar a descendência já existente. Não há outra espécie animal onde a longevidade das fêmeas ultrapasse a sua idade fértil; não há outra espécie, portanto, onde é permitido às fêmeas fazerem parte da sociedade sem ser como elementos reprodutores. Este mecanismo é entendido como um dos factores mais relevantes para criar uma sociedade que permita uma infância alargada, também um (quase) exclusivo dos seres humanos. A infância alargada - o período de tempo em que nos é permitido ser um elemento não contributivo para a sociedade, passando todos os custos associados a esse período para os outros elementos do grupo - é um mecanismo essencial na nossa formação e aprendizagem. Com o aumento consistente da esperança média de vida esse período tem também sido alargado: havendo condições económicas que o permitam, essa decisão tem sido sempre tomada. Isto é uma diferença radical para os outros primatas, por exemplo, e uma das razões pelas quais os nossos antepassados terão conseguido uma hegemonia tão avassaladora sobre as outras espécies.

E é por isto tudo que gostamos de ver os nossos filhos brincar com os avós, como eu vi hoje de manhã antes de sair de casa, a jogar ao «peixinho», muito entusiasmados pela hipótese de ganhar o jogo, de suplantar a geração anterior, de, a pouco e pouco, se transformarem no elemento dominante do grupo. E é também por isto que nós, pais, não gostamos nada de os ver com pressa de chegar ao fim da infância e da juventude: porque sabemos que isso é contraproducente para o adulto em que eles se estão a transformar, mas também porque isso é um sinal de que nós estamos condenados a, um dia, ser avós, um mero sidekick de um outro protagonista (não será também isso a «crise de meia idade»?)

27.10.17

Facto

O Complexo de Édipo morreu com a igualdade de género.

26.10.17

Rancores

Um dos sinais mais interessantes da inteligência das crianças é o facto de elas não guardarem rancores. São muito sensíveis a injustiças e são capazes de guardar na memória um calendário de todos os eventos onde se sentiram injustiçadas - e não têm problemas em lembrá-lo; mas uma injustiça factual (e as crianças são muito precisas da identificação de injustiças, têm quase sempre razão) não é a mesma coisa que um rancor que nasce de uma discussão onde o sentimento de vingança, ainda que pequena, se impõe com facilidade, domina a conversa, e destrói qualquer terreno firme de lógica e ponderação. As crianças não ficam ressentidas - ofendem-se, sentem-se, mas quase nunca se ressentem - nem alimentam mágoas. A razão é simples: elas estão a jogar o jogo da sobrevivência do mais forte e nenhum destes sentimentos foi alguma vez útil a alguém. O mistério é saber por que razão quando chegamos a adultos nos esquecemos disso.

Teoria do caos

Educar um filho é o caso mais extremo do efeito borboleta.

19.10.17

Aprender a aprender





Uma das estratégias usadas pela professora do meu filho que foi pior compreendida na reunião de pais - aprender a aprender - é, sem surpresas para os leitores deste blogue, a estratégia mais eficaz no combate ao insucesso escolar, sendo que o pódio é completado por outros dois tipos de intervenção que poderíamos considerar «progressistas» e que são do desagrado de quem está convencido de que a disciplina do antigamente faz muita falta: a comunicação oral e a tutoria pelos pares. Não deixa de ser altamente encorajador observar também que são as três medidas mais baratas de implementar.

(De «A Educação em Exame»)

Isabel Moreira



Se alguma vez os meus filhos falarem de mim como a Isabel Moreira fala dos seus pais nesta entrevista (que, a espaços, me comoveu - o podcast é o A Beleza das Pequenas Coisas, feito pelo Bernardo Mendonça para o Expresso) é porque fiz as coisas bem feitas.

16.10.17

F.F.R.

A vida é uma sucessão de eventos surpreendentes, mas poucas coisas ilustram tão bem esta verdade como eu ter hoje um filho inscrito na federação francesa de rugby.

Tal filho, tal pai

Uma festa de anos é sempre útil para nos surpreendermos, outra vez, com a enorme semelhança entre filhos e pais. Não é nada difícil dispararmos o gatilho da genética quando fazemos estas observações, até porque as parecenças físicas são as mais evidentes. Mas aquilo que mais me fascina é o que não é devido à genética - ou que poderá não ser devido só à genética: o comportamento, os tiques de linguagem corporal, a facilidade ou dificuldade de interacção social, a segurança ou insegurança com que o mundo é encarado, et cetera. Levar um filho a uma festa de anos é quase como sair à rua nu, de mão dada com uma versão de nós próprios que não é ainda filtrada pela self-consciousness da idade adulta. Claro que os irmãos são muito diferentes entre si e que os pais também podem ser muito diferentes entre si, e que portanto mandaria a mais elementar prudência encarar com desconfiança esta ideia de causalidade, mas eu não consigo deixar de, primeiro, envergonhar-me e orgulhar-me de coisas que os meus filhos fazem em festas e, segundo, aproveitar o comportamento dos filhos dos outros para confirmar a ideia que tenho dos pais deles. E claro que é assim que se constroem famílias, afinidades e comunidades - e é assim que facilmente rancores resistem ao passar das gerações e que ódios antigos persistem no tempo. A facilidade com que cometemos a imprudência de gostar quando os nossos filhos se parecem connosco (um tema muito caro a este blogue) é indissociável da rapidez com que usamos os filhos dos outros para os julgar. Todos nós devíamos ser melhores do que isto.

12.10.17

É complicado


Depois de na semana passada relatar a história de uma família que decidiu educar a sua filha combatendo os estereótipos de género, o episódio desta semana do Hidden Brain volta ao assunto da identidade de género e ao interminável debate nurture vs. nature e como talvez o «vs.» esteja ali a mais. Resumindo, é complicado.

10.10.17

Carpinteiros vs. jardineiros

Não me tinha apercebido, até ontem, da extensão da preferência por carpinteiros face a jardineiros. O carpinteiro, como proposto pela Alison Gopnik, é aquele que trabalha por um resultado; já o jardineiro é aquele que trabalha por um processo. É desanimador ver tantos carpinteiros, tantos resultadistas, tantos que desconfiam da autonomia das crianças, tantos que tudo parecem querer sacrificar à disciplina, tantos que evocam ideias do passado que eu esperava que estivessem passadas. Talvez as outras pessoas tenham ideias muito diferentes das minhas para o tipo de adulto que querem que os seus filhos sejam. Foi uma reunião de pais reveladora.

9.10.17

Da empatia

Eu já fui criança e por isso não devia ser tão difícil o exercício da empatia em relação aos meus filhos, mas é. Às vezes é só isso que eles precisam, sentir que os pais estão a perceber aquilo por que eles estão a passar. E nós insistimos em não perceber, cometendo o erro de inverter a lógica, acusando-os (mentalmente) de não «fazerem um esforço» para perceber que têm de se vestir, calçar os sapatos, lavar os dentes, sentar-se à mesa, arrumar o quarto, et cetera. Não que não seja esse o nosso papel - a educação também passa pela aprendizagem destas pequenas rotinas - mas por vezes apercebo-me de que o esforço em falta é o meu. Isto é especialmente grave porque os meus filhos mais velhos têm ambos uma idade que eu me lembro de ter, e estão a passar por coisas que eu me lembro de passar. É comum lembrarmos que ser criança é uma coisa maravilhosa - mas também é comum esquecermo-nos de que ser criança é uma coisa aterradora, semelhante a habitar um universo paralelo povoado por criaturas fantásticas onde tudo pode acontecer. Talvez seja por isso que nós sejamos tão reticentes em mergulhar nas nossas memórias de infância e ajudar os nossos filhos a temer menos aquilo que não conhecem. É uma forma de egoísmo, mas espero que isso não me revele como um pai narcisista.

6.10.17

5.10.17

«Os Açores»

Ontem os meus filhos pediram-me para ir aos Açores. Não sei de onde tiraram essa ideia - do tio que esteve lá há pouco tempo? - mas disseram-no os dois cheios de convicção e vontade. O que será «os Açores» na sua imaginação? Falámos que era um conjunto de ilhas e que é possível viajar de barco entre algumas delas; que há baleias e golfinhos; que fica no meio do oceano e que faz parte de Portugal; que o voo é mais longo do que o voo para Lisboa. Eu já estive nos Açores e sei o que encontrar lá e sei que as nossas expectativas não são defraudadas, mas invejo-os por poderem ter dos Açores - e de qualquer outro sítio - uma ideia ainda fantástica totalmente moldada à criatividade da sua imaginação. Tanto quanto sei, os Açores podiam ser noutro planeta que o fascínio não seria maior.

4.10.17

O exemplo

O papel mais importante dos pais é ser o exemplo para os filhos. Mas aqui reside o problema: quando nós achamos que estamos a dar o exemplo, não estamos - estamos geralmente a doutrinar sobre um assunto qualquer que eles vão esquecer rapidamente; e quando achamos que eles estão distraídos e não estão a prestar atenção ao que estamos a fazer, estamos sempre a ser o exemplo.

Be the change

Um episódio do sempre recomendável Hidden Brain, de Shankar Vedantam, sobre as dificuldades que um casal americano encontrou quando decidiu educar a sua filha sem a muleta dos estereótipos de género. Eu já perdi esse comboio há muito tempo, embora seja uma ideia que me persiga. Mas reconheço a minha fraqueza: teria sido muito mais fácil (para mim) fazê-lo com uma rapariga do que com rapazes. Uma «maria-rapaz» não me causa qualquer estranheza, até porque «maria-rapaz» nunca foi um termo pejorativo; já o contrário é mais difícil de assimilar e de definir sem recorrer a preconceitos insultuosos, sempre com alusões à orientação sexual do rapaz, o que é especialmente grotesco. Eu gostava de ter tido a coragem que tiveram estes pais, de contribuir para demolir as expectativas que a sociedade deposita nos rapazes e nas raparigas, de maneira a que não fosse um problema o meu filho levar um casaco para escola, como hoje levou, com uma cor que não é aceite pelos seus colegas e que o torna alvo de piadas maldosas. E olhando para a experiência que tenho tido em educar dois rapazes é cada vez mais evidente para mim que a importância da sua natureza biológica para a definição da sua «identidade de género» é muito menor do que aquilo que eu estou preparado para admitir. A enorme inteligência das crianças demonstrada pelo trabalho da Alison Gopnik tem de servir para nos esclarecer sobre a sua capacidade de adaptação ao mundo que as rodeia: uma criança que é tratada, desde a nascença, como rapaz ou rapariga vai rapidamente começar a comportar-se como rapaz ou rapariga. E, mais uma vez, somos nós, os pais, que estragamos tudo ao projectar nos nossos filhos as nossas inseguranças sobre o que é ser «homem» ou ser «mulher», usando-os de uma maneira muito egoísta como hipótese de redenção dos nossos próprios falhanços.

3.10.17

Bonsai kitten

Ser a favor do planeamento familiar, isto é, promover a ideia de que cabe às famílias a decisão de quando e como ter filhos (por oposição a um modelo, quase sempre religioso, onde essa decisão fica dependente de outra, a de não usar meios contraceptivos), não significa não reconhecer o impacto que esse tipo de organização social e familiar tem na relação entre pais e filhos. E ele é - foi - tremendo. Essa decisão constituiu o pecado original da parentalidade moderna. As crianças deixaram de ser o resultado esperado e passivo de uma relação conjugal, para passar a ser um projecto fruto de uma decisão planeada. Cada filho passou, por isso, a carregar consigo o potencial de ser um sucesso ou um insucesso dos pais - individualmente e enquanto casal. Em vez dos pais serem a razão de ser dos filhos, foram os filhos que passaram a ser a razão de ser dos pais, o que é, compreensivelmente, uma tragédia. Não surpreende por isso que seja em sociedades onde o nascimento de bebés seja condicionado que esta relação esteja mais deturpada: a mãe-tigre chinesa, que sacrifica tudo em nome do desempenho académico dos filhos, um modelo de educação onde só o que produz resultados objectivos tem valor, onde a independência psicológica da criança é estilhaçada desde cedo para a conformar às guias laterais do trajecto definido pelos pais. Um modelo sinistro que gera adultos depressivos e ansiosos. O desafio do pai contemporâneo de classe média nas sociedades ocidentais é por isso o de conciliar estas duas forças à partida opostas: os filhos como decisão informada mas ao mesmo tempo isolados da ansiedade existencial dos pais.

2.10.17

Fail better

Educar é sobretudo - diria quase exclusivamente - ajudar as crianças a desenvolverem ferramentas e estratégias para lidar com a frustração.

Contacto

As pessoas que defendem a despenalização do aborto têm de partir do princípio de que quando se interrompe uma gravidez não se está a matar uma pessoa. Mesmo a maior parte das pessoas que combatem a despenalização do aborto são capazes de reconhecer que um feto com 10 ou 12 semanas não é uma pessoa, isto é, não é um ser humano autónomo da mãe. Sempre tive dificuldade em tentar definir o momento onde isso acontece - tive eu e tem toda a gente, daí o debate -, como se uma gravidez fosse uma variante do Paradoxo de Zenão. Contudo, nos países onde o aborto foi despenalizado a sociedade foi forçada a definir um consenso, geralmente às 12 semanas. Haverá argumentos científicos e biológicos para sustentar essa decisão, mas creio que é, no limite, uma decisão filosófica - e é, acima de tudo, uma decisão. Seja como for, estaremos todos de acordo que é algures durante a gravidez que essa autonomia acontece; que é durante a gravidez que o feto passa a criança capaz de sobreviver fora do útero (o avanço da ciência coloca hoje essa data à volta das 23 ou 24 semanas de gestação - embora estejamos a falar de uma sobrevivência fora do útero fortemente apoiada por meios artificiais de suporte de vida.) Isto são os factos biológicos. Mas o que se passa ao nível psicológico da formação de uma pessoa? A dependência do bebé do corpo da mãe não acaba no nascimento (embora, claro está, possa acabar), e muito menos a sua dependência psicológica. Com uma semana de vida um bebé não é ainda uma pessoa; com um mês de vida também não é. Com um ano de vida, já o será? E dois? E cinco? O que é, fora do contexto jurídico, uma pessoa? Tal como as 12 semanas do aborto ou as 23 semanas da sobrevivência extra-uterina, a idade do fim do processo de formação de uma pessoa é um número difícil de definir. Como saberemos que o processo acabou? Como saberemos que aquela pessoa já não depende de nós? Seja qual for a resposta cabe aos pais - cabe-me a mim - ter presente que a relação que se cria com os filhos é tão vital como o oxigénio que passa pelo cordão umbilical, e que a interrupção voluntária dessa relação pode ter consequências nefastas. Os pais são o primeiro ensaio de sociedade para uma criança; a primeira experiência do outro; o primeiro ensaio do amor; o primeiro contacto com a autoridade; a primeira fonte de conflito; a primeira experimentação da confiança e do respeito. A maneira como cada um de nós irá usar e moldar estes conceitos em adulto depende desse contacto fundamental. A maneira como os meus filhos irão avaliar o mundo será sempre radicada no meu comportamento agora. Metaforicamente o cordão umbilical não foi cortado - e não cabe aos pais cortá-lo. Cabe-lhes a eles.